Lilian Malta: a delicadeza do tempo moldado em branco

artistas que pintam com cores. Outros, com palavras. Lilian Malta, no entanto, modela o tempo com as mãos — e o transforma em poesia branca, delicada e translúcida. À frente de um ateliê montado dentro da própria casa – belíssima por sinal - ela vive em um ritmo próprio, guiada pela natureza, pelo silêncio e pela imperfeição que revela a beleza de sua arte.

Lilian foi minha parceira de aula na cerâmica. Lembro que ela era sempre a mais curiosa, estudiosa e inconformada. Enquanto eu buscava foco na repetição, Lilian estava de olho em novos materiais, novos jeitos de fazer. Workshops, viagens, cursos. Ela não via obstáculos para querer aprender sempre mais e mais.

Não à toa, hoje Lilian tem hoje uma assinatura única. Ela não para até sentir, até que toque sua essência e dê forma à sua expressão.

Quando entrei no ateliê da Lilian para esta entrevista, não era apenas cerâmica o que se moldava ali — era silêncio, era cuidado, era tempo. Um tempo que não se mede em minutos, mas em camadas de paciência, secagem, queima, espera. Um tempo que quase desapareceu do nosso cotidiano e que ali, no canto envidraçado da casa, ganha forma — translúcida, leve e, ainda assim, firme como a própria artista.

Bióloga de formação, Lilian encontrou na cerâmica não uma profissão, mas um chamado. “Sempre fui guiada pela emoção e pela natureza”, ela me diz, com o olhar repousado sobre a concha, uma de suas peças mais belas. Bone china. A porcelana que, em suas mãos, se transforma em pele, em vento, em casca de ovo que resiste.

É curioso pensar que sua trajetória começou com a rigidez acadêmica da ciência, e foi se desdobrando até tocar o imaterial da arte. Do fascínio pela cultura japonesa à busca por técnicas quase esquecidas, Lilian passou por ateliês em São Paulo, workshops na Itália, estudos nos Estados Unidos. Mas foi no silêncio da pandemia, ao montar seu primeiro forno em casa, que encontrou o que sempre esteve ali: a liberdade de criar sem amarras.

No ateliê integrado à casa, onde o cheiro da massa bone china divide espaço com o aroma de café fresco, tudo é matéria-prima — inclusive o erro. “No começo, eu não aceitava que desse errado. Hoje, entendo que o que mais vende são as peças que se transformaram. As que trincaram, entortaram, se reinventaram. Como a própria vida”, reflete Lilian.

A inspiração vem da natureza, claro, mas também do vidro, do metal, daquilo que carrega uma tensão entre o bruto e o sutil. Sua estética busca o imperfeito, o que escapa do controle. O branco do bone china, tão puro e profundo, é sua base — sobre ele, sombras, toques de celadon e ouro.

Ela me mostra uma peça que parece luz. Literalmente. Segura contra o sol e ela brilha como pele de peixe. “O gesso é essencial nesse processo, sabia?”, ela comenta com a paixão de quem não cansa de estudar. “Se você quer uma peça muito fina, precisa trabalhar bem o molde. A alma do bone china começa em um bom gesso.”

E por que o bone china?
A porcelana sempre me trouxe uma sensação de leveza, sofisticação. Mas o bone china… ele tem algo a mais. É como a pureza que autoriza as coisas a serem apenas o que são.

Você criou um ateliê dentro da sua casa. Como é viver com a arte assim, tão presente?
É uma convivência intensa. Meu ateliê é um lugar de visitação, mas também de recolhimento. Para criar, preciso estar só. Ter meu próprio material, meu forno me deu liberdade. É ali que as ideias nascem, sem pressa, sem plateia.

Sua arte tem uma identidade muito própria. Como você a descreveria?
Foi uma descoberta. Durante a pandemia, comecei a experimentar. Sozinha, sem repetir padrões. E nesse movimento, encontrei minha voz. Hoje, entendo que a imperfeição é a minha linguagem. O que trinca, o que deforma, é ali que nasce a beleza.

Onde você busca suas referências?
Na natureza. E curiosamente, tento não ver cerâmica. Quero fugir do óbvio. O meu olhar se guia por aquilo que escapa à perfeição – cada erro é um convite à criação.

Você viajou muito em busca de conhecimento. Algum destino te marcou especialmente?
O Japão me encanta, desde quando eu era criança e meu pai dividia suas experiências de viagem comigo. Fui pra lá com foco total na arte da cerâmica, e mudou tudo. A filosofia do wabi-sabi, essa beleza encontrada nas coisas simples, imperfeitas, foi profundamente transformadora pra mim.

Nessa conversa, você citou o ceramista John Shirley com tanto entusiamo . Como ele impactou seu trabalho?
John foi um divisor de águas. Generoso, profundo conhecedor do bone china e de técnicas refinadas, ele abriu um novo mundo pra mim. Também admiro outros criadores que trabalham com as mãos — alfaiates, tecelãos, ceramistas. Gente que respeita o tempo da matéria.

Como a cerâmica se reflete na sua personalidade e rotina?
Ela me ensinou a aceitar. Aceitar os processos, os erros, os limites. Aprendi a dizer “não”, a impor ritmos. E também percebi o quanto o artesanal tem espaço na vida das pessoas. Cada peça carrega uma conversa íntima com quem a escolhe.

Como você vê a cerâmica no mundo atual?
Como um respiro. Um retorno ao essencial. A cerâmica é tempo, presença, memória. Num mundo tão apressado, o feito à mão tem um valor imenso — e vai ser cada vez mais valorizado.

algo ritualístico na rotina de Lilian. Ela vai ao ateliê todos os dias, mesmo sem pressa, mesmo sem entregas. “Às vezes a peça não deu certo. Eu deixo ela lá. Quietinha. Em algum momento, vem uma nova história para ela.” E assim, do silêncio, nasce de novo e vira ouro.

Quando pergunto sobre o futuro, os olhos dela brilham com mistério. “Tem muita coisa vindo. Uma delas estará na Casa Cor 2025.” E sorri, sem dizer mais. Porque certas coisas ainda estão no tempo do processo. Do repouso. Do calor do forno.

Antes de sair, ela me entrega uma peça para fluturar na piscina.
Foi quase que um convite - para parar, tocar, sentir.

A casa que abriga o ateliê e os sonhos de Lilian

A casa de Lilian teve projeto do arquiteto Reinach Mendonça e o seu ateliê construído posteriormente foi projeto da Triz Arquitetura.

Localizada nos Jardins, a casa respira verde no meio de São Paulo e tem obras belíssimas, de artistas brasileiros, como Beatriz Milhazes, Manabu Mabe, Ascanio, Santo e Paulo Pasta, além de muitas peças criadas pela própria artista, decorando e compondo os diferentes espaços.

É realmente inspiradora!
Dá só uma olhada :)

Bate-bola com Lilian Malta

Cor que não sai da sua paleta: o branco puro do bone china.

Um toque de luz: celadon e ouro.

Como você imagina sua arte nas casas das pessoas? Como um gesto de cuidado. Um detalhe que transforma o cotidiano.

Uma reação inesquecível de um cliente: Gratidão genuína. Ver uma peça minha sendo celebrada dentro de um lar é o que me move.

Top 3 artistas: Yamandu Costa, Hamilton de Holanda, Amaro Freitas — e Olafur Eliasson, pela forma como une arte e ciência.

Lugar favorito em São Paulo: minha casa

Lugar favorito no mundo: depois da minha casa, a Bahia

Vem novidade aí? Sempre. A arte não para de se reinventar.

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